sábado, 6 de dezembro de 2014

Leves tropeços por aí

Lembrou que nada mais a traria para perto. Revirou todas as suas memórias e não encontrou absolutamente nada. Apenas o seu rosto frio, e um olhar vazio no espelho do banheiro. Cortou pelas metades as mentiras. Atirou no chão toda aquela angústia que sentia e toda a raiva que guardava por ela mesma. Errar não é pecado. Amar sim. Cometer o mesmo erro então... Nem se fala. Aqui, Vicentina corre de si mesma. Mora sozinha e quer fugir de casa. Como "há tempos" atrás, parece qualquer outra coisa, mas é só tristeza. Lá, do outro lado da parede, Lúcia se veste de música e solidão. Seu lado preferido. Seu acorde predileto. Nada mais a corrompe, nada mais a assusta. Apenas os seus breves pensamentos de ânsia de suicídio. Já escreveu isso antes. Agora apenas sente e deixa ir. Sente e deixa ir. Assim como o pulso, que ainda pulsa. Eles sempre serão os últimos. Algumas cicatrizes não fariam mal a ninguém, mas Vicentina não sabe se guardar. Perde pra ela mesma, nas vontades de se machucar, de sentir, de cair, de se deixar ir, mais uma vez. Essas cicatrizes abertas que insistem em doer, esse plano obsessivo por satisfazer o seu prazer, irremediável, imensurável, a perturbam tanto, mas tanto, que nem ela sabe mais o que sentir. Sua opinião sobre os deuses, as dúvidas, as ruas, "para que servem as ruas"? Ela não sabe de mais nada. De onde veio, pra onde vai. Talvez nunca soube. Hm... acho que já soube sim. Mas Lúcia cruzou o seu caminho. E Vicentina se perdeu por entre suas próprias vaidades. Acumulou contas, pagou despesas, curou o porre, se perdeu, atravessou a rua mais movimentada da capital de olhos fechados, e caiu, sem saber onde estava. Um leve tropeço a fez desfalecer por alguns segundos. Caiu em si. Viu exatamente para onde iria e não aguentou a dor, a culpa. Continua sem saber pra onde ir, que ônibus tomar, que disco ouvir, que acorde era aquele mesmo? 
- Que rua levava o meu coração ao teu? Aquele caminho, aquele caminho, aquele! Nada mais faz sentido. 
Nada mais a faz sentir que deve recuperar o tempo perdido, porque já foi. E tudo aquilo que sentia foi embora e permanece aqui. Mas ninguém precisa saber. Ninguém. Errou e errará mais quantas vezes for necessário. Ela não consegue se perdoar. Precisa que venha de fora, e não virá. Precisa que seu amor venha de fora, mas esqueceu que amar por si só é um verbo intransitivo, que não precisa de complemento. Nem nominal, nem verbal, nem o caralho a quatro. NADA. Amar é simples. Mas o egoísmo de Vicentina calou os batimentos que Lúcia tinha por ela. NADA mais a trará de volta. Nem os versos mais sinceros, nem os acordes mais bem feitos, nem Lás com baixo em sexta, nem Mis menores, nem aquela canção. 
- Lembra? Aquela música? 
- Não lembro, fiz questão de esquecer, de apagar, de não querer sentir. 
Vicentina tenta encontrar Deus. Tenta buscar uma saída, uma solução pra essa enorme imaturidade que está sentindo. Tudo aquilo era verdade. Admita, Vicentina. Não há como mudar o passado. Aceite. Corra atrás do que é seu. Não cometa os mesmos erros. Viva em paz consigo mesma. Apague o que tiver que ser apagado e mantenha a cabeça no lugar. Não há nada pior do que alguém como você nesse momento, e esse é e será o seu julgamento pra você mesma até o fim, até você admitir que perdeu, que não dá mais, que não vale mais nada. E que remoer essa dor infinita não adianta de nada. Não resolverá. Não lhe matará, nem mesmo conseguirá lhe fazer crescer e mudar da noite pro dia. Nem vinte Luas de Sangue a farão mudar se não tirar essa idéia de comiseração da sua cabeça. Pare e pense. Ouça a natureza dos seus sentimentos, ouça a sua própria voz dentro da sua consciência. Mesmo que medíocre. No final das contas será sempre você e você. E quem sabe, se você considerar, a possibilidade de algo maior e melhor. Só há um jeito. Apenas um... mas se você quer algum motivo a mais pra continuar, eu lhe dou 1000. Sirva-se do que bem entender. Vista-se como pede o manual, vá pelo caminho mais fácil, certamente ninguém quererá estar em seu lugar, muito menos calçar os seus sapatos. 
- Sinto muita raiva pelos meus erros Lúcia. Raiva de mim mesma, por ter optado pelo pior. Me desculpe por todos eles, por envolver você nessa mancada que eu escolhi chamar de vida. Estou tentando me recuperar. Erguer os olhos e caminhar. Decidida. Preciso me perdoar. Me perdoe. 
- Suma. 






Karin Segalla Ferreira