Dançar pra não dançar. Vicentina correu para perto de si mesma mais uma vez. Dessa vez, não sabe como, sentiu-se quase irreparável. Não estava ali, de jeito nenhum. Apenas uma ideia a assombrava naqueles dias, apenas uma única ideia, de um único momento, de uma única paz, que ela sabe, não sentiu sozinha. Lembrava-se (como se tivesse deixado essa mesma lembrança guardada durante todo esse tempo) das suas duas mãos frias, encostadas na parede daquele quarto, quase vazio, cheio de solidão e desejo, que ela tanto sentia. Aquele vazio cheio de desejo de Lúcia e solidão. Lembrou-se e quase por um breve instante esqueceu daquele desejo. Daquele amor desmedido, daqueles olhares, daqueles gestos tempestuosos e ricos, quase bucólicos, quase macios e ásperos. Ela evitava, e quanto mais evitava mais evidenciava o que estava sentindo. As palavras e os olhares saiam-lhe pela boca, pelo rosto, pelas mãos, por todos os seus poros, brotavam intensamente de suas veias e diante de seus próprios olhos, e diante dos olhos de todos, até aqueles que não queriam ver, viram. Menos Lúcia. Lúcia estava tentando evitar, tentando não amar, tentando não sentir, simplesmente tentando. Não se sabe ao certo em que momento aqueles dois corpos fraquejaram nos seus esforços de se manterem eternos e encobertos. Logo foram desvendados por eles mesmos. Ali. Diante daquela parede, daqueles dois quartos vazios. Diante dos seus próprios olhos, Vicentina se viu acariciando aquela parede gélida e quente, buscando todo o torpor de vontade, de desejo, de medo, que também sentia, do outro lado. Talvez uma parede fosse mais fácil de ser colocada no meio desses dois corpos nos dias de hoje. Vicentina se arrepende, quer a parede e as suas duas mãos frias exatamente onde deveriam estar. Onde estavam e de onde nunca deveriam ter saído. Não, elas não deveriam ter simplesmente saído daquela parede. Elas deveriam estar respeitosamente envolvendo tudo aquilo que Vicentina se diz e se convence piamente acreditar: nela mesma. Ela duvida de seu amor, duvida de suas próprias dúvidas, mas mesmo assim não deixa de amar, muito menos de duvidar. Tem certeza de que se deixar levar por essa lembrança doce, é capaz de enfiar suas mãos, aquelas que agora frias se convencem disso, em qualquer papel que vê pela frente. Só pra esquecer. Só pra achar que irá aquecer o coração de Lúcia com algumas palavras bobas. Ah... aquela parede. Só ela sabe o que Lúcia sentiu, só ela viu o que Vicentina pensou e amou, e chorou e se escondeu. Só ela uniu esses dois corpos, talvez pela primeira vez, antes daquele primeiro beijo, antes daquele primeiro olhar. E depois, do primeiro beijo, da primeira lua em vênus. Nada se compara, nada do que já foi experimentado e vivido se compara. Absolutamente nada. É simples. Vicentina precisa aceitar seu amor por ela mesma. Vicentina precisa aceitar que ama desmedidamente em liberdade. Vicentina precisa aceitar tudo aquilo que recebeu e ainda recebe, por mais que pense que tudo aquilo que merece sejam essas memórias, macias, leves, às vezes breves e imprecisas.
-Não, Vicentina! Viva! Guarde as memórias, elas te pertencem. Aceite-as como meu último presente antes do próximo desvairo para você. Meu amor é sem medidas. Mas preciso ser livre. Liberte-me e terás um beijo meu a cada manhã. Para todos os teus dias, enquanto durar o amor. Enquanto durar a vida. Seja breve, não esqueça teus cigarros na minha casa. O acaso te deixará só. Não quero te ver ferida, apenas me ame. Eu saberei quando voltar. Mesmo assim não me espere. Eu saberei.
- Os traços de amor ainda estão nos meus vestidos. Regarei as flores na primavera, para que no inverno, em minha calçada, apenas o aroma das rosas e as folhas caídas do teu sorriso me façam companhia. Seremos breves. Não estarei só. Serei minha companhia. Antes de voltar, liberte-me. Também preciso ser livre, mas apenas antes de voltar, e depois. Não quero que "o meu verão resseque o teu jardim".
Caso você queira posso passar seu terno, aquele que você não usa por estar amarrotado.
Costuro as suas meias para o longo inverno...
Use capa de chuva, não quero ter você molhado.
Se de noite fizer aquele tão esperado frio poderei cobrir-lhe com o meu corpo inteiro.
E verás comoa minha pele de algodão macio, agora quente, será fresca quando janeiro.
Nos meses de outono eu varro a sua varanda, para deitarmos debaixo de todos os planetas.
O meu cheiro te acolherá com toques de lavanda - Em mim há outras mulheres e algumas ninfetas - Depois plantarei para ti margaridas da primavera e aí no meu corpo somente você e leves vestidos, para serem tirados pelo total desejo de quimera.
Os meus desejos irei ver nos teus olhos refletidos.
Mas quando for a hora de me calar e ir embora sei que, sofrendo, deixarei você longe de mim.
Não me envergonharia de pedir ao seu amor esmola, mas não quero que o meu verão resseque o seu jardim.
(Nem vou deixar - mesmo querendo - nehuma fotografia.
Só o frio, os planetas, as ninfetas e toda a minha poesia)
(Fernanda Young)
Karin Segalla Ferreira.