sexta-feira, 26 de julho de 2013

Maré Morta



- Ah! Vicentina! Até quando adormecerás? 
Teu gosto nos meus lábios ainda cala a minha boca e me convida a caminhar pelo teu destino. As flores que te dei ainda não secaram e eu posso sentir o cheiro delas daqui. Minhas mãos ainda imóveis sorriem e bebem a solidão de outrora. A herança inerte do caminho que me conduziste ainda brilha tranquila e cautelosa. Agora já não movo a um breve traço ou laço de intimidade ou lucidez. Teu rosto e tua face ainda estão comigo acordados, no vazio desse mar. Dessa vez, por assim dizer, sinto-me cansada. Os serenos contrastes de nossos apegos, livres das lutas de cada dia. Nossos dois corpos agora presos, e livres das cãibras pungentes e do peito procurando afago no próximo respirar, depois de cada entrelaçar de pernas. Nossos corpos agora dançam a cada sombra, não apenas nua, mas livre de si mesma. As estrelas agora, o ritmo dos quadris, a mesma dança, ainda que oculta e abstrata, tudo despreza tudo. O todo se afasta da parte que nos cabe. Não tenho fraqueza alguma agora, nem força. Mas sei que nem tudo tem teu nome. Nem todas as rosas são as rosas que moras. Nem todos os caminhos me conduzem ao teu caminho. Vicentina, feriste os meus lábios com todas as tuas palavras. Meus olhos com tudo o que fizeste, como se eu fosse fase qualquer. Deixaste a minha vida para trás, meus cabelos molhados em teu travesseiro para outros loiros. Tua face registrará outros cílios, outra simetria, outra. 

- Lúcia. Até quando inventarás motivos? A lua, os lugares, as rosas, cada rua somente existe porque me respiras. A glória que busca, terrena, já não existe. Nem no meu afago, nem no teu espelho. Mas no teu reflexo. A esperança pode descansar, mas não cansa, Lúcia. Não sejas triste com a tua memória, mas com o meu silêncio. Com o silêncio que há pouco havia em nossos peitos. Diante de teu corpo agora eu alimento risos e lágrimas. Perdão e culpa. Gozo e tormento. Doce amargo. Razão indecifrável. Lucidez. Loucura. Não sei dizer mais nada, Lúcia.


Cartas para Vicentina; (ad infinitum, Lúcia)

Karin Segalla Ferreira

sexta-feira, 12 de julho de 2013

O Tempo

     Quando dois corações solitários pulsam em um mesmo grave, em um mesmo sintoma de paixão e angústia, o verdadeiro e derradeiro desvairo se inicia. A surpresa ao reconhecer a distância implacável da falta de coragem, o medo ao sentir-se só em tamanho universo de coisas, sons, cores, pessoas, mágicas e magias. Tantas coisas a serem descobertas. Mas nada. Nada afasta do coração aquela falta. O desespero ímpar de se navegar em águas dante desconhecidas e nunca por nenhum outro que pertence ao mesmo, à procura de ser um só, faz de todo e qualquer momento como se fosse o último. O último suspiro, a última noite. O despertar incerto e impreciso, partindo de uma só vez a falta de coragem e todas as coisas terrenas. 

- Agora eu acordei. Perplexo, nas tais ausências do nexo. Num caminhar tão desconhecido quanto o navegar pelas tais águas. Pelos tais rios e mares. Eu cansei de agonizar. Cansei de cantar o riso e o pranto por todos os lados. Cansei de me exemplificar nas palavras. Cansei de definir, protagonizar, vestir personagens, máscaras e afins. Meu reflexo agora é um só. Nenhuma tristeza gera mais impiedade que a tristeza da renúncia. Nenhuma, nem impunidade. Não traz nenhum afago externo, nenhuma garantia. Nenhuma, nenhuma... A falsa esperança do incompleto desenho refletido, que não existe e nem nunca existiu, assiste agora ao cansaço de uma alma que ainda não navega, mas está ancorada... em algo maior. Ainda sobra nessa loucura toda, gerada pela falta, a sombra de um leve caminhar em movimento. 
 - Por onde andas? Por onde afagas esse teu corpo que é teu, mas tão meu? 
 - O movimento dos meus braços, agora abertos, me trazem ao fim do mundo. Eu girei em torno de todos os meus pensamentos, de todas as inconstâncias, cantos, lágrimas. 
 - Como é teu nome? 
 - Estou despedaçada, e gostaria de permanecer calada. Foi dormindo que eu acordei. Essa tarde já não me parece mais aquela que era antes. Nem teus olhos. Nem teus braços, muito menos tuas mãos, as duas, frias. 
 - Eu forjei teu movimento. Forjei teus passos, tuas escolhas. Até mesmo os teus sentimentos. 
 - Que pena. Estranhos momentos em que me botaste. Mas agora eu sei. Não és meu, nunca foi. Eu sou minha, ainda que tenha esquecido. O meu desenho foi eu quem fez. A minha estrada, as cores dela. Meu caminhar, os passos, foi eu quem deu. A minha ausência agora é tua. Afasta-te. Leve de mim teu gosto, leve o tempo, reinvente a tua memória. Eu reinventarei a minha. Voltarei a ser, ainda que não me alcance. Verei a lua nascer nos braços de quem amo. Afasta-te! 
 - Não resistirás. Andarás solitária. Estrela fria. Não pense que estarás longe de minha vista. 
 - Não me importo. Viverei feliz ao lado dela, que amo. Nada me afastará de mim mesma. "O amor ressuscita". 

     Em algum lugar do mundo, a festa se iniciou nos céus. Um caminhar que começa ao lado de quem se ama é a renúncia de todas as outras memórias, ainda que infalíveis e imensas. Elas não duram muito tempo. O amor vale mais, faz mais falta, se preserva. É eterno, em sua totalidade, e em todas as suas partes, nesse caso, duas, inteiras. Ela não tinha nenhuma letra. Ela, já não tinha mais nenhuma palavra, nenhuma dor que a fizesse trazer de volta a um simples alívio. Ela queria mudar. E pagou o preço. Justo pelo que resolveu viver. Ela ainda não sabe. Mas ela a espera, mesmo sem ter feito nenhuma promessa. Ela sabia que a luz estaria indelevelmente acesa. Nos olhos e no horizonte. 

 "O tempo é eternidade"; Cartas para Vicentina. 

 Karin Segalla Ferreira