- Ah! Vicentina! Até quando adormecerás?
Teu gosto nos meus lábios ainda cala a minha boca e me convida a caminhar pelo teu destino. As flores que te dei ainda não secaram e eu posso sentir o cheiro delas daqui. Minhas mãos ainda imóveis sorriem e bebem a solidão de outrora. A herança inerte do caminho que me conduziste ainda brilha tranquila e cautelosa. Agora já não movo a um breve traço ou laço de intimidade ou lucidez. Teu rosto e tua face ainda estão comigo acordados, no vazio desse mar. Dessa vez, por assim dizer, sinto-me cansada. Os serenos contrastes de nossos apegos, livres das lutas de cada dia. Nossos dois corpos agora presos, e livres das cãibras pungentes e do peito procurando afago no próximo respirar, depois de cada entrelaçar de pernas. Nossos corpos agora dançam a cada sombra, não apenas nua, mas livre de si mesma. As estrelas agora, o ritmo dos quadris, a mesma dança, ainda que oculta e abstrata, tudo despreza tudo. O todo se afasta da parte que nos cabe. Não tenho fraqueza alguma agora, nem força. Mas sei que nem tudo tem teu nome. Nem todas as rosas são as rosas que moras. Nem todos os caminhos me conduzem ao teu caminho. Vicentina, feriste os meus lábios com todas as tuas palavras. Meus olhos com tudo o que fizeste, como se eu fosse fase qualquer. Deixaste a minha vida para trás, meus cabelos molhados em teu travesseiro para outros loiros. Tua face registrará outros cílios, outra simetria, outra.
- Lúcia. Até quando inventarás motivos? A lua, os lugares, as rosas, cada rua somente existe porque me respiras. A glória que busca, terrena, já não existe. Nem no meu afago, nem no teu espelho. Mas no teu reflexo. A esperança pode descansar, mas não cansa, Lúcia. Não sejas triste com a tua memória, mas com o meu silêncio. Com o silêncio que há pouco havia em nossos peitos. Diante de teu corpo agora eu alimento risos e lágrimas. Perdão e culpa. Gozo e tormento. Doce amargo. Razão indecifrável. Lucidez. Loucura. Não sei dizer mais nada, Lúcia.
Cartas para Vicentina; (ad infinitum, Lúcia)
Karin Segalla Ferreira
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